quarta-feira, 19 de outubro de 2011

o primeiro sono

enquanto dedos escorrem em corpo, corpo ergue-se acima dos chãos.
são entre aqueles milímetros de tempo em que o peso atinge as pálpebras que sinuosamente dá formas a mais extensa fantasia.
um menino metade corpo metade música convida-os ao baile.
flutuando através do cheiro de saudades rosas eles se encontram, depois de décadas, séculos! milênios!
o encanto do encontro deu a entender que nada mais o separariam
dá-se o chamado do globo ocular a retornar à posição genérica, porém as pálpebras cerradas ainda se recusam.
retorno ao disfarce "real". àquele que rondamos mortos.
mas ainda resta um jeito: entregar-se aos prazeres do sonho, e flutuar novamente.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

uma carta de Somewhere Land

estou em estado de desespero. esta é uma carta de despedida. a quem escrevo? não sei. na verdade sei. à Ninguem. ou quem sabe a mim mesmo. mas quem sou Eu? me vejo eternamente me despedaçando em infinitos projéteis como um estilhaço de uma bomba localizada nos meus órgãos vitais que é acionada num simples sopro dos ventos provindos de um buraco negro. e ao mesmo tempo me reconstituindo como retalhos costurados à linha e afiada agulha. o problema é que estes retalhos são recosturados na mais pura desordem. contrastando com o mais perfeito dos quebra-cabeças finalizados.
o fim é o que eu busco, um ponto final. o último encontro. o encontro com a Morte. talvez seja pra ela a quem remeto esta primeira e última carta. sei que ao assinar a última letra eu sumirei, assim espero. cansei do infinito, quero poder desenvolver uma memória, assim poderei cuspir este fardo pesado que chamo de vida e deixá-lo lá atirado para me desfazer de uma responsabilidade.
Morte, por favor, entrego-me a ti e somente a ti. aceite meu último suspiro de existência.

Somewhere land

existe um lugar cujos habitantes se comunicam apenas por trocas de energias, sensações e gestos.
muito se tentou documentar algo de lá. sem sucesso. no momento em que Algo era definido, Algo desaparecia. ninguem entendia o porquê, simplesmente sumia, se desintegrava. esta tentativa foi deixada de lado.
neste lugar o conceito de espaço era incoerente pois enquanto os seres se comunicavam, desta troca surgia-se Algo novo, como se estivesse em contínua expansão. da mesma lógica do sumiço, existia o surgimento.
neste lugar o conceito de tempo era incoerente pois a cada troca de energia mais vivo, tudo que havia lá, ficava. tudo era imortal, não havia fim.
o sentido da vida lá era a vida e a vida só potencializava-se no contato, no encontro entre seus habitantes, e assim viviam eles, estes: sofrendo. com o sofrimento, o lugar se expandia, os habitantes vitalizavam-se e cada momento era novo e diferente.
este lugar nunca poderá ser encontrado, descoberto e definido. apenas sentido.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

desconforte-se

Doces momentos em que Pedro salta para fora de sua casa. Retira-se de seu fétido lar
coberto de energia densa que o amarra em sua prisão voluntária.

Pedro dedicou-se massivamente na construção de seu espaço-depósito de isolamento
e solidão. Tem medo dos mistérios do Fora. Da imensidão do mundo. Da possiblidade dos
encontros de olhares com os desconhecidos da rua. Tem medo de perceber que é pequeno e
covarde. Por isso se tranca. Com seus cigarros e suas dores.

O medo se transforma em preguiça, ou preguiça sempre foi, nunca se soube. Não
importa. Pedro fica em casa e se esvazia. Vomita o mundo, caga as lembranças. Excreta tudo:
planos, desejos, possibilidades. A materialidade se dissolve, porem seu odor permanece. Odor
denso. Pedro vazio, atmosfera densa. O ar esmaga Pedro.

Procura desesperadamente um jeito de fazer o tempo passar mais rápido. Fuma
seus cigarros devagar até que sua garganta seque. Se masturba sem vontade, sem nenhuma
referência. Abre o jornal nos horários das sessões de cinema já sabendo que não irá. Senta no
sofá e espera um convite anônimo.

De repente, quando o ambiente de clausura já se tornava insustentável ao corpo de
Pedro, uma carta surge por debaixo de sua porta. Um convite para uma defesa de doutorado.
Sem pensar, Pedro veste seus calçados e sai.

A luz do fim do dia desconforta seus olhos, o que a Pedro lhe agradou, pois o
desconforto o distanciava de sua ausência de dor. Pedro nunca se sentira tão feliz perante
aquela sensação que o lembrava de sua existência.