Xénos acorda, como sempre, sem despertador. Caminha até a cozinha, onde procura o resto de café coado que, de forma sempre previsível, nunca sobra. Abandonando o bule de alumínio deformado pelo tempo, se contenta que não há mais nada o que fazer naquele lugar. Pega a chave e começa o ritual de abrir as cinco trancas da porta de entrada. Sim, Xénos é inseguro. Antes de sair, nunca esquece de levar sua faca de serra, o instrumento mais defensivo que tem. Ele sabe que ao sair de casa vai enfrentar a rua, palco do mistério, onde as coisas são fruto do acaso. Xénos sabe que mudará de um universo previsível que é seu apartamento para um universo que a cada pisada no chão um novo fenômeno se apresenta. O caso é que, de tão acostumado com essa infame jornada, o imprevisível para ele já era rotina. Mas hoje não.
Hoje Xénos vai cortar o laço da previsibilidade do imprevisivel. Vai pedir demissão.
Sai na rua, de cabelos engruvinhados, barba por fazer, mesma roupa de ontem (quiça de anteontem), mas ninguem nota. Sente a sensação rotinesca de que é o mais sóbrio daqueles que perambulam pelo caminho. Mais que o senhor de 60 anos que anda com seu carro na contramão e o travesti que o acompanha no banco ao lado. Mais que o mendigo que caminha em passos tortos e sua companhia na qual só ele consegue ver e conversar. Mais até que o guarda-noturno e o traficante que fazem negócio na esquina escura. Será que Xénos está certo? Será ele o mais sóbrio da rua ou ao contrário? Uma coisa é certa. Ele é o mais solitário da rua.
A todo caminho Xénos pensa em como será sua vida amanhã. A única coisa que sabe é que enquanto a noite é governada pela (e apenas) a lua, o dia é governado pelo homem. E àqueles que buscam a liberdade de suas pulsões e desejos oprimidos pelos olhos invisíveis diurnos, migram para o regime lunar, no qual inexiste qualquer contrato social e existe um consentimento da memória passageira, onde as coisas acontecem e depois são esquecidas, como um sonho.
Xénos fará o contra-caminho. Vai migrar para o universo da lei e, assim, conseguirá tirar três das trancas de sua porta, se sentar no sofá no conforto do lar e ver televisão, sem antes programar o despertador para o novo dia.
gostei
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